Cinemateca em chamas: não foi por falta de aviso

30/07/2021 (Atualizado em 30/07/2021 | 11:10)

Foto: Reprodução/Ariane Breyton
Foto: Reprodução/Ariane Breyton


Abandonada pelo governo de Jair Bolsonaro (sem partido), um galpão da Cinemateca Brasileira, localizado na Vila Leopoldina, Zona Oeste de São Paulo pegou fogo no início da noite desta quinta-feira (29). A Cinemateca é a instituição responsável pela preservação da produção audiovisual nacional e guarda mais de 100 anos de história.

A Cinemateca está fechada desde julho de 2020. O mesmo galpão que pegou havia sido alagado, em 2020. Embora não seja a sede da instituição, no galpão estava parte da história do cinema nacional.

Em maio deste ano, ação do Ministério Público Federal contra a União por abandono da instituição foi suspensa após o governo se comprometer as ações implementadas pela preservação do patrimônio.

A preocupação com o acervo já foi discutida e cobrada por profissionais do setor e parlamentares. Mas a gestão Bolsonaro seguiu na política de desmonte empregada em todos os setores, especialmente, na cultura.

A Cinemateca tem – ou tinha – o maior acervo da América do Sul, com 250 mil rolos de filmes e mais de um milhão de documentos relacionados ao cinema como fotos, roteiros, cartazes e livros. O laboratório de restauração da Cinemateca já foi considerado um dos mais modernos do planeta.

Deterioração do acervo da Cinemateca

O acervo da Cinemateca Brasileira está em avançado estado de deterioração desde que a instituição foi fechada, em julho de 2020. A preservação da local e do acervo, conforme compromisso do secretário especial de Cultura do governo de Jair Bolsonaro (sem partido), Mario Frias, deveria ter ficado a cargo, em caráter temporário, da Sociedade Amigos da Cinemateca (SAC) após o encerramento temporário das atividades.

O objetivo era garantir a preservação do acervo da instituição – mais de 240 mil rolos de película e 41 mil títulos que corriam risco de deterioração pela falta de cuidados apropriados – até uma nova organização social ser escolhida para gerir a Cinemateca. Nada disso ocorreu. A data estipulada para a reabertura da instituição, já sob os cuidados da SAC, era 12 de janeiro. Um edital para contratação de uma nova gestora também não foi elaborado.

A pior crise da instituição desde 1946, data em que foi criada, culminou na falta extrema de recursos para serviços básicos, como pagamento de água e luz, além de atrasos nos salários dos funcionários e fim de contratos com brigada de incêndio e equipe de segurança. Foram muitos protestos em 2020 para chamar a atenção ao desmonte do acervo.

Governo não comprovou ações na Cinemateca

Em julho de 2020, o Ministério Público Federal em São Paulo (MPF-SP) entrou com uma ação na Justiça contra a União por abandono da Cinemateca Brasileira. A promotoria questionava a falta de contrato para gestão da instituição.

O contrato para administração da Cinemateca firmado entre o governo federal e a Organização Social (OS) Associação Comunicação Educativa Roquette Pinto (Acerp) terminou no dia 31 de dezembro de 2019 e, desde então, não houve nova licitação.

Na ação judicial, a promotoria destacou problemas como risco de incêndio, falta de vigilância, atrasos nas contas de água e luz, e atraso no pagamento de salários.

No entanto, em maio deste ano, o MPF suspendeu a ação contra a União depois que o governo federal se comprometeu a mostrar as ações implementadas pela preservação do patrimônio no prazo de até 45 dias.

Tentativa de desmonte da Cinemateca

A Associação Roquette Pinto, mantenedora da instituição de 2018 até o vencimento do contrato, continuou fazendo a gestão da Cinemateca de maneira improvisada para que a instituição não ficasse abandonada – mesmo sem dinheiro para despesas básicas e salários.

Ainda assim, a falta de repasses do Executivo ao longo de 2020 teria acumulado uma dívida de R$ 14 milhões do governo federal, segundo a entidade.

Funcionários impediram acesso

Em julho do ano passado, funcionários da mantenedora impediram o acesso às dependências da Cinemateca de representantes do Ministério do Turismo, que incorporou a Secretaria da Cultura. Um boletim de ocorrência foi registrado. Quando o atual secretário de Cultura do governo federal, Mário Frias, assumiu o cargo, solicitou as chaves da instituição. A entrega foi realizada com escolta da Polícia Federal.

Punição ideológica

A Associação Roquette Pinto afirma que tinha dois contratos com o governo federal. O primeiro para a gestão da TV Escola junto ao Ministério da Educação, e outro da Cinemateca.

O contrato teria sido encerrado após a exibição pela TV Escola de programas com Olavo de Carvalho, indicado como “ideólogo” do governo na atração. O então ministro da Educação, Abraham Weintraub, decidiu pôr fim ao contrato.

Parte dos funcionários da TV Escola na época do fim do contrato foram retirados da maneira abrupta das instalações que ficavam no Ministério da Educação, em Brasília.

Cinemateca corre risco há tempos

O professor de cinema Carlos Augusto Calil, ex-diretor da Cinemateca, já havia alertado em outubro de 2020, em participação em programa de televisão, que a instituição enfrentava a maior crise da sua história.

Para Callil, a memória se encontrava em risco após o que ele classificou de “confusão administrativa do governo federal”. Por se tratar de um acervo de filmes, altamente inflamável, a situação de abandono aumenta os riscos de incêndio – a Cinemateca já pegou fogo quatro vezes, a última havia sido em 2016.

Imagens como o milésimo gol de Pelé, a inauguração da TV Tupi e cenas de “Um Cangaceiro”, primeiro filme brasileiro premiado em Cannes, mostram a riqueza do acervo.

Profissionais da área cobram providências

Em abril deste ano, o abandono da Cinemateca foi tema de discussão na Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados.
A presidente da Associação Brasileira de Preservação Audiovisual, Débora Butruce, alertou na ocasião sobre o risco que o patrimônio corria por estar de portas fechadas sem receber a devida manutenção. E ressaltou que se tratava de uma tragédia em andamento.

“A gente sabe que existem saberes específicos que se perdem a cada mudança tecnológica e esse é um processo que não acaba nunca como o princípio básico da preservação: nada está preservado, tudo está em processo de preservação”, ressaltou.

Reação imediata

O líder da Minoria, deputado Marcelo Freixo (PSB-RJ), afirmou que “o incêndio na Cinemateca não é tragédia anunciada, é projeto de governo”. E completou:

A deputada Lídice da Mata (PSB-BA) lamenta o “retrato do que o governo Bolsonaro quer para a cultura”.

O deputado Camilo Capiberibe (PSB-AP) cobra a responsabilização de Bolsonaro e seu governo.

Para o deputado Tadeu Alencar (PSB-PE) trata-se de crime.

O deputado estadual Carlos Minc (PSB-RJ) critica com veemência a postura do governo.

O perfil Observatório Internacional fez um pequeno histórico dos incêndios que têm destruído o patrimônio nacional nos últimos anos.

A deputada Benedita da Silva (PT-RJ) também culpou o governo pela tragédia.

A deputada Jandira Feghali (PcdoB-RJ) afirma que “não há como mensurar as perdas para a cultura e o cinema nacional”.

A deputada Alcie Portugal (PCdoB-BA) lembrou das denúncias feitas pelos próprios trabalhadores.

O deputado Marcelo Calero (Cidadania-RJ) disse que o governo é “obscurantista” e “inimigo” da cultura.

Já o senador Humberto Costa (PT-PE) disse que foi um “crime premeditado”.

O historiador Euclides Vasconcelos questiona o que mais está por vir.

Fogo controlado

O Corpo de Bombeiros afirmou que o fogo foi controlado por volta das 20h. A administração do órgão está sob responsabilidade do governo federal, por meio da Secretaria Especial de Cultura, em Brasília. Em nota, a secretaria informou que “lamenta profundamente e acompanha de perto o incêndio que atinge um galpão da Cinemateca Brasileira” e que foi pedida uma investigação à Polícia Federal para apurar as causas do fogo.

Segundo a capitã dos bombeiros Karina Paula Moreira afirmou à GloboNews, o fogo teria começado durante uma manutenção do ar condicionado que estava sendo realizada por uma empresa terceirizada contratada pelo governo federal. Uma faísca teria dado início ao fogo e a empresa não conseguiu controlá-lo.

Em entrevista à TV Globo, a diretora-executiva da Sociedade Amigos da Cinemateca, Maria Dora Mourão, disse que o galpão atingido pelo fogo era o único em uso dentre os galpões da Cinemateca. No local são armazenados documentos e filmes de longas e curta-metragens, um “acervo relevante”.

Com informações do G1, Carta Capital, Agência Câmara

Fonte: por: Ana Paula Siqueira / Socialismo Criativo