Estudo de médicos bolsonaristas sobre a “nova cloroquina” tem indícios de fraudes

28/07/2021 (Atualizado em 28/07/2021 | 16:50)

Foto: Pixabay
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Os estudos clínicos realizados no Amazonas por médicos bolsonaristas sobre o uso da proxalutamida, a “nova cloroquina” propagandeada pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido), foram excluídos pela fabricante da relação de pesquisas de referência apresentadas no pedido de autorização feito à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). A chinesa Kintor Pharmaceutical, fabricante da proxalutamida, informou à jornalista Malu Gaspar, do jornal O Globo, que há indícios de fraude no estudo.

A proxalutamida é um bloqueador hormonal sintético ainda em estudos no combate ao câncer de próstata e o de mama. Ele é manufaturado na China, mas ainda não é comercializado. A pesquisa bolsonarista teve apoio de um obscuro laboratório americano e uma rede privada de hospitais de Manaus e é alvo de uma investigação na Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep).

Eficácia de 92% no tratamento da covid-19

Segundo o que os pesquisadores divulgaram na época em uma coletiva de imprensa, depois amplificada por Jair Bolsonaro dia 18 de julho, quando deixou o hospital Vila Nova Star em São Paulo, a proxalutamida teria eficácia de 92% no tratamento de pacientes graves da covid-19.

“Tem uma coisa que eu acompanho há algum tempo e nós temos que estudar aqui no Brasil. Chama-se proxalutamida. Já tem uns meses que isso aí, não está no mercado, é uma droga ainda em estudo” e “existe no Brasil de forma não comprovada cientificamente”.

Jair Bolsonaro

“Na ocasião, o elevado número de mortes descritas no trabalho – 141 inicialmente, mais de 200 reportadas posteriormente à Conep – suscitou na comunidade científica a suspeita de que ou os dados tivessem sido manipulados para forçar um resultado “milagroso”, ou seus coordenadores teriam deixado parte expressiva dos voluntários morrerem durante a realização do estudo, já que não seria possível aferir se os óbitos em excesso ocorreram no grupo placebo ou entre os que receberam a droga”, escreveu a jornalista Gaspar.

A Kintor afirma que os dados do estado foram excluídos porque se referiam a voluntários hospitalizados, enquanto o ensaio registrado agora na Anvisa vai acompanhar pacientes ambulatoriais. Na nota com as respostas sobre o caso, a empresa ressalta que o estudo atual é “independente”, sem relação com o ensaio feito em Manaus.

Além do elevado número de mortes constatado no estudo, outras inconsistências foram identificadas não só por pesquisadores, mas também pela Conep.

Registro de estudo não foi feito no AM

Segundo fontes da comissão ouvidas por Malu Gaspar, a pesquisa não poderia ter sido conduzida no Amazonas, uma vez que tinha sido registrada no Distrito Federal. Além disso, o protocolo do ensaio propunha que ele fosse voltado para pacientes de quadros leves a moderados. Mas, ao final, os resultados apresentaram dados de pacientes graves.

As inconsistências não interferiram apenas no planejamento da Kintor. Levaram também o infectologista Ricardo Shobie Diaz, da Universidade Federal do Estado de São Paulo (Unifesp), a desistir de coordenar um dos grupos dessa nova pesquisa. “Fui orientado a não assumir o trabalho de fase 3 porque não havia garantias de que os dados de fase 2 (no Amazonas) estavam corretos”, explicou Diaz.

Os indícios de irregularidades ainda levaram dois grandes laboratórios farmacêuticos, a Aché e a Eurofarma, a recusarem uma parceria com os autores do estudo do Amazonas para viabilizar a proxalutamida no país, como mostrou o blog em abril. As mesmas lacunas foram repercutidas pela prestigiada revista científica Science no fim de junho.

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O estudo

O remédio ganhou holofotes após a divulgação de um estudo entre março e junho, à época em fase pré-print — ou seja, antes da revisão por outros cientistas —, realizado por pesquisadores brasileiros e de outros países. Eles dizem que, em um grupo de pacientes hospitalizados com covid-19, a mortalidade após o uso da proxalutamida foi 77% menor ao longo de 28 dias.

Os autores publicaram suas conclusões na segunda-feira (19) em estudo (já revisado por pares) no periódico Frontiers in Medicine, após ter sido rejeitado por publicações científicas de prestígio, como The New England Journal of Medicine e The Lancet. No estudo, os pesquisadores argumentam que a taxa de hospitalização em homens tratados com a proxalutamida foi reduzida em 92% em comparação com os tratamentos convencionais.

Ao divulgar os dados preliminares da pesquisa, em março, os pesquisadores afirmaram que mais de 47% dos pacientes com covid-19 que tomaram placebo durante o estudo morreram, contra menos de 5% dos que tomaram proxalutamida.

Todos esses dados chamaram a atenção de alguns pesquisadores, que questionam a validade das descobertas e, por consequência, a eficácia real da droga contra a covid-19. Há também suspeitas de fraude, possível conflito de interesse com a fabricante do medicamento e discrepâncias entre a metodologia anunciada e o que de fato foi feito durante o estudo. Os autores da pesquisa negam qualquer irregularidade.

Estudo deveria ter sido interrompido

A primeira questão é: o que explicaria uma mortalidade tão alta no grupo de controle (que tomou placebo, ou seja, uma substância inócua), sendo que os pacientes estudados não estavam em fase terminal?

Considerando-se que o estudo feito foi um duplo-cego (ou seja, nem pesquisadores nem pacientes poderiam saber quem tomou remédio e quem tomou placebo), o alto índice de mortalidade teria de ter feito o estudo ser interrompido antes que se chegassem a tantas mortes, afirma à BBC News Brasil o infectologista Mauro Schechter, professor-titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Isso porque, segundo Schechter, duas hipóteses poderiam surgir desses dados: ou a droga estudada em si poderia estar causando tantas mortes, ou o remédio teria um efeito tão potente que seu uso amplo deveria ser imediato.

“Tratando-se de um duplo-cego, como você sabe se não é a droga (no caso, a proxalutamida) que está matando as pessoas?”, questiona Schechter. “Se não é isso, é porque a droga é milagrosa. Nesse caso, os pesquisadores teriam de pedir emergencialmente à Conep (Comissão Nacional de Ética em Pesquisas) autorização para distribuí-la. De qualquer modo, o estudo teria de ter sido interrompido”.

Mauro Schechter

O efeito “milagroso” de um bloqueador hormonal seria implausível contra o coronavírus, segundo Schechter, uma vez que a covid-19 é uma doença viral às vezes seguida de distúrbios imunológicos.

Por intermédio de seu advogado, o endocrinologista Flavio Cadegiani, o pesquisador principal do estudo, refutou as acusações. Afirmou que o alto número de mortes “correspondeu à mortalidade intra-hospitalar no Estado do Amazonas [onde foi feita parte da pesquisa, no auge do colapso sanitário no Estado]. Aliás, foi abaixo da mortalidade geral registrada pelo Estado. (…) Os óbitos não ocorreram no início do estudo, mas no seu decorrer, e após a administração da medicação/placebo, que se deu em um curto período. A maior parte dos óbitos, de fato, ocorreu ao final do estudo, pois os médicos tentavam de tudo para manter os pacientes vivos (o que é certo fazer). Portanto o total de óbitos somente se obteve ao final do estudo. Além disso, conforme a equipe médica hospitalar, as mortes eram decorrentes da covid-19, e não da medicação”.

Segundo os indicadores da covid-19 no Amazonas, a taxa de letalidade hospitalar de pacientes do coronavírus internados no Estado teve média móvel variando de 23% a 63% entre fevereiro e abril deste ano.

Mas Mauro Schechter afirma, ainda, que causa estranheza no meio científico a rapidez com que um estudo complexo e com mais de 600 voluntários foi conduzido: foram poucos meses entre o início dos testes clínicos e a apresentação dos resultados.

“Não existem estudos dessa complexidade que tenham sido realizados com essa rapidez, principalmente se tratando de um estudo duplo-cego, que exige uma equipe treinada. E, mesmo assim, depois dos testes, um banco de dados desse tamanho leva meses para ser analisado”.

Mauro Schechter

Cadegiani respondeu que “a velocidade do recrutamento e o número de recrutados estão claramente descritos no manuscrito. A duração do estudo está condizente com a gravidade da doença e com a urgência que a pandemia da covid-19 requer. Se o estudo demorasse anos, como querem os tais ‘pesquisadores’ consultados por você (repórter), ao seu final a medicação experimentada já não teria mais razão de existir. Tomam-se como exemplo as vacinas para covid-19 que foram desenvolvidas em prazo recorde, chegando a ser dez vezes menor do que o prazo normal.”

Questionamentos no exterior

Alguns desses pontos do estudo também despertaram questionamentos de cientistas estrangeiros que investigam o trabalho de seus pares, como os do site PubPeer (voltado à discussão de estudos científicos) e For Better Science (que discute integridade científica).

Nesse último, o fato de quase 50% dos pacientes do grupo de controle terem morrido também foi considerado “estranho”.

A resenha do estudo apontou divergências entre a gravidade dos pacientes listados no final da pesquisa e os dados iniciais de registro dos testes clínicos — que indicavam que os pacientes a serem estudados teriam covid-19 em estágio moderado. “Uma taxa de mortalidade de quase 50% (em um grupo com covid moderada) não faz sentido, a não ser que alguém esteja mentindo”, diz a resenha.

O texto argumenta ainda que poderia haver um conflito de interesses pelo fato de a pesquisa ter sido financiada e executada por empresas que lucrariam com a venda da proxalutamida, caso ela passe a ser usada no combate à covid-19. No estudo publicado em 19 de julho deste ano, os autores afirmam que “a pesquisa foi conduzida na ausência de quaisquer relações comerciais ou financeiras que possam ser interpretadas como potencial conflito de interesses”.

Ceticismo com os resultados

Reportagem publicada em 7 de julho na revista Science ainda com base no estudo pré-print apontava que, embora alguns médicos consultados pela revista considerassem promissora a ideia de testar drogas antiandrogênicas, outros viam com ceticismo os resultados da pesquisa brasileira. Um dos entrevistados afirmou que se tratava de resultados “bons demais para serem verdade”, considerando-se que eram em linhas de pesquisa que já haviam sido tentadas por outros pesquisadores, até então sem igual sucesso.

“Quase não há intervenções médicas na história da medicina que tenham essa magnitude de benefício, em particular com a covid-19”, disse à revista Eric Topol, vice-presidente-executivo do Instituto de Pesquisas Scripps, nos EUA. Outra pesquisadora, Christina Jamieson, que estuda câncer de próstata, disse que achou os dados “convincentes” no caso de os autores do estudo “terem feito o que disseram ter feito”. Segundo a Science, a publicação científica The New England Journal of Medicine rejeitou o trabalho liderado por Cadegiani porque precisava ter acesso aos dados originais da pesquisa, e não apenas à análise enviada, e que sem as informações brutas não seria possível analisar os resultados.

Em junho, o mesmo blog de Malu Gaspar, noticiou que a Conep, encarregada da análise e aprovação de estudos científicos no Brasil, prepara um relatório à Anvisa e ao Conselho Federal de Medicina pedindo uma investigação por “suspeitas de fraude e falhas graves” na pesquisa — incluindo divergências significativas entre a forma como o estudo foi proposto e como foi, de fato, realizado, além do alto número de mortes entre os voluntários que tomaram placebo.

Cadegiani respondeu que a reportagem é “inverídica” — embora a BBC News Brasil tenha confirmado que de fato existe uma apuração em curso.

“Os procedimentos que tramitam na Conep são sigilosos. Portanto, neste momento, não é apropriado tecer qualquer comentário sobre solicitações da Conep. Mas é certo que o estudo foi conduzido respeitando todos os mais rigorosos princípios éticos e todas as normas aplicáveis”. Flavio Cadegiani

Pelo Instagram, ele também afirmou que “nossos dados são sólidos, sérios, foram auditados, tivemos monitoramento de segurança continuamente, etc. Os resultados são nítidos — e somente alguém com que nunca viu paciente usando a medicação é capaz de dizer o contrário. Enquanto nós brasileiros viabilizamos esse achado, outros países usufruirão. Parabéns Brasil. Parabéns a todos que contribuíram para acabar com minha reputação. Parabéns àqueles que recuaram por ‘medo político’ só porque o presidente citou o nome (do medicamento). Parabéns àqueles cegos incapazes de separar ciência de política na cabeça. Parabéns a todos estes pelo número de vidas perdidas por motivos imorais”.

Ele exaltou, na publicação, o fato de a fabricante da proxalutamida, a farmacêutica chinesa Kintor, ter obtido autorização de uso emergencial para a droga contra a covid-19 no Paraguai.

Antes da publicação dos estudos com a proxalutamida, Cadegiani fez defesas do chamado “tratamento precoce” — conjunto de medicamentos sem eficácia comprovada contra a covid-19 — e é autor do estudo que embasou o aplicativo TrateCov, do governo federal, que acabou tirado do ar.

Falhas de metodologia

Em maio, a BBC News Brasil noticiou que esse estudo também foi acusado de ter falhas de metodologia. Cadegiani respondeu à época à reportagem que “como todo paper (estudo), existem limitações, e os pesquisadores agradecem por terem sido levantadas. São questões facilmente resolvíveis. Como foi tudo muito rápido, e eu não tenho uma grande equipe de suporte, estamos revisando os pré-prints e aprimorando determinados pontos”.

De volta à proxalutamida, a Anvisa autorizou em 19/7 a realização de estudos para avaliar a segurança e a eficácia da droga em reduzir a infecção viral causada pelo coronavírus e no processo inflamatório causado pela covid-19.

Em entrevista coletiva realizada em março com os dados preliminares obtidos no Amazonas, Cadegiani afirmou que nunca tinha visto “nada parecido” aos efeitos da proxalutamida. “Os números são tão gritantes que seria impossível não atribuir a melhora (ao medicamento)”, declarou. Outro médico presente no evento, Michael Correa, da cidade amazonense de Itacoatiara, diz que foi “testemunha ocular” da redução de mortes promovida pelo medicamento.

Sobre o que explicaria o efeito de um medicamento antiandrogênico (bloqueador hormonal) contra a covid-19, os pesquisadores afirmaram na coletiva que essa hipótese surgiu da observação de que homens seriam desproporcionalmente mais atingidos pela doença (algo que já é contestado por alguns estudos internacionais), mas o mesmo não ocorria com meninos que ainda não haviam passado pela puberdade. “Isso nos levou à hipótese da relação com os hormônios”, declarou o pesquisador Andy Goren.

Bolsonaro já havia feito menções à droga em lives realizadas em abril, o que levou o medicamento a ganhar tração nas discussões em grupos bolsonaristas. Seu filho Eduardo Bolsonaro defendeu a droga em postagem no Twitter em março, divulgando os resultados preliminares do estudo.

Na segunda-feira (19), o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, afirmou que a droga ainda precisa ser estudada antes de ser usada em pacientes.

“A proxalutamida está no início das pesquisas e precisa-se estudar mais para verificar primeiro a sua segurança, segundo a sua eficácia, e a partir daí se pode ser considerada para o tratamento”. Marcelo Queiroga

Testes com a droga serão realizados também nos EUA.


Fonte: Com informações do PSB nacional jornal O Globo, BBC News Brasil, Uol e Brasil 247