Luta anticapitalista e enfrentamento à violência contra a mulher

19/07/2021 (Atualizado em 19/07/2021 | 09:49)

O episódio de violência doméstica denunciado pela ex-esposa de DJ Ivis, Pamella Holanda, que divulgou vídeos em que o artista a espanca, ganhou ampla cobertura da imprensa, avalanche de manifestações de internautas e cancelamento de contratos. 

Nesta semana, foi lançada mais uma edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública com dados que moldam o retrato da violência contra a mulher. Entra ano e sai ano, a realidade segue massacrando as mulheres. Independente da repercussão desse tipo de horror ou das medidas como as adotadas contra o DJ agressor, pouco se discute as raízes desse problema. 

Patriarcado capitalista

Em conversa exclusiva com o Socialismo Criativo, a professora, pesquisadora, doutora, mestra e especialista em Direito Taylisi Leite explicou, sob o ponto de vista do feminismo marxista, as origens do patriarcado que estrutura as nossas relações sociais no sistema capitalista. 

Taylisi é a autora do livro Crítica ao femininismo liberal: valor-clivagem e marxismo feminista no qual ela empreende uma análise das relações peculiares entre sociedade patriarcal contemporânea e modo de produção, centrado no valor. 

“Trata-se, pois, de uma reflexão não apenas oportuna acerca das interfaces entre sistema econômico e sexismo, mas necessária para que se possa examinar os processos sociais de gênero desde uma perspectiva estrutural e não apenas cultural, evidenciando-se os pilares do patriarcado contemporâneo”, descreve a sinopse da obra de Taylisi. 

Violência entranhada nas estruturas da sociedade

Na entrevista ao Socialismo Criativo, Taylisi explica que a violência contra a mulher é uma manifestação extrema de violência entranhada em todos os espaços e nas estruturas da sociedade.

Ela pontua que há uma divisão da existência humana em dois únicos gêneros possíveis e  vinculada aos sexos biológicos. Mesmo sendo gênero uma construção social que reúne características de um modelo de comportamento, performance, existência e subjetividade a partir de um binarismo estanque e heteronormativo que rege toda a nossa forma de nos comportar e relacionar.

“Esse binarismo construído na modernidade de que só existe homem e mulher não tem precedentes na história. Homem é forte, inteligente, assertivo, corajoso, tem que ser promíscuo sexualmente, batalhador e resistente. Mulher tem que ser resignada, bela, dócil, cuidadora, tem que perdoar, ser mãe, generosa, gentil, tola e inocente.”
Taylisi Leite 

Discurso punitivista contra a violência

Taylisi observa que quando ocorrem episódios como o que envolve o DJ e os que mostram o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, a violência contra mulher tem dois entendimentos imediatos. 

O primeiro é defender como solução o recrudescimento do Direito Penal e do sistema de justiça. Há o clamor por penas mais severas, leis mais rígidas e celeridade e eficiência nos julgamentos e condenações. 

“Uma ideia que confunde justiça com vingança e tem na pena esse ideal de retribuição do mal causado. Como se isso fosse fazer alguma diferença para violência que é um fenômeno estrutural da sociedade”, reflete.

A professora comenta que o discurso punitivista acredita que o endurecimento das penas pode prevenir situações de violência. Como se as penas garantissem que as pessoas vejam que o crime não compensa e que o sistema penal tem uma função pedagógica. Enquanto, na realidade, o sistema penal tem função de retribuir o mal com o mal. 

Além disso, esclarece Taylisi, essa lógica de vingança acaba gerando muitos outros problemas. Entre eles, elenca, o máximo encarceramento de seletividade do sistema penal. “Não prende todo mundo, mas tem uma clientela muito específica se a gente for pensar em termos estruturais e institucionais”, completa. 

Mudanças culturais contra a violência

O segundo entendimento são as perspectivas de tentativa de mudança na cultura e que também vão nesse sentido pedagógico. Esse olhar entende a existência do machismo porque somos uma sociedade machista na cultura. Enxerga que o patriarcado é um conjunto de práticas sociais oriundas de uma cultura misógina machista. 

Esse entendimento cultural considera que a distância entre homem e mulher é um produto da cultura e que se esse fenômeno cultural for revertido, se todas as pessoas deixarem de ser machistas, o machismo e a violência contra a mulher vão acabar.

Já quando a análise do patriarcado ocorre através das lentes do marxismo, que parte da teoria do valor, o binarismo hierarquizante que inferioriza existencialmente as mulheres diante dos homens revela-se entranhado na estrutura de produção e reprodução do capitalismo e da valorização do valor. 

“Não dá para combater um fenômeno que é estrutural só no plano da cultura. Temos uma complexidade dialética em que isso está na ideologia, na cultura, na psiquê e nos aparelhos ideológicos, que reforçam essa replicação”, diz Taylisi.

Machismo na estrutura capitalista

O machismo também está na estrutura produtiva, no trabalho e nas formas sociais do capitalismo. Com essa lógica, defende Taylisi, é possível entender que o patriarcado só será completamente destruído se não houver mais capitalismo. Para ela, não tem como atuar no plano da cultura e destruir o patriarcado.

Tanto o discurso punitivista quanto a perspectiva cultural não apresentam propostas para que a violência não aconteça. Um caminho, aponta a professora, seria investir em medidas como educação de gênero para promover debates mais profundos sobre esse fenômeno da violência contra a mulher. 

Taylisi comenta que as crises do capitalismo penalizam sobretudo as mulheres, inclusive durante essa pandemia, junto com as populações vulneráveis. As formas de violência contra mulher ocorre em múltiplos níveis muito mais complexos do que a violência doméstica. 

Anticapitalismo contra a violência

A professora avalia que não é pela punição ou destruição do indivíduo que seja possível resolver um problema estrutural. Os mesmos que defendem essas medidas, incluindo os grandes aparatos de mídia, alimentam o desmonte do Estado, a austeridade das finanças públicas, o ultra neoliberalismo, o fim dos direitos sociais, as contrarreformas como a previdenciária, a trabalhista e a administrativa.

Essa agenda neoliberal, que avança feito boiada no governo de Jair Bolsonaro (sem partido), causa destruição das pessoas, principalmente das mais vulneráveis. Por isso, Taylisi considera as visões punitivista e cultural como caminho para enfrentar a violência contra a mulher, uma redução que dilui a complexidade desse fenômeno. 

“Para explicar a complexidade do fenômeno, a gente vai chegar à raiz do problema que é a totalidade capitalista. Por isso que esse tipo de compreensão é tosca e a gente precisa urgentemente resgatar os referenciais teóricos do feminismo marxista para compreender esse fenômeno do patriarcado capitalista e resgatar as lutas das esquerdas e das mulheres para uma luta anticapitalista a partir de uma reflexão teórica”.
Taylisi Leite 

Punição financeira para o DJ

As duas plataformas de áudio por streaming mais populares no Brasil, Deezer e Spotify, anunciaram a exclusão de todas as músicas do DJ agressor de mulher das playlists editoriais. As canções seguem disponíveis para os usuários que as buscarem, mas não constarão mais nas seleções com sugestões feitas pelas plataformas.

Ivis tinha inúmeras músicas entre as mais ouvidas do Spotify. Antes da decisão das plataformas de áudio, a produtora Vybbe, responsável pelos contratos do DJ, havia informado que ele foi desligado da empresa.

As agressões ocorreram em Fortaleza-CE. O governador do estado anunciou a prisão do agressor. Curiosamente, o Ceará foi o único estado que não informou os dados das notificações oficiais de violência contra meninas e mulheres no ano de 2020 ao Fórum Brasileiro de Segurança Pública. A entidade é responsável pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública, que lançou a edição de 2021 nesta semana.

Entre outros dados, o levantamento revela que ao menos 630 mulheres procuraram uma autoridade policial diariamente para denunciar um episódio de violência doméstica. Os números impressionam pela magnitude: 230.160 mulheres denunciaram um caso de violência doméstica em 26 Unidades da Federação, exceto as do Ceará, como a de Pamella. 

Fonte: Socialismo Criativo